O Lampião tupinambá
Mais de 500 anos depois da chegada de Cabral, um índio aterroriza o sul da Bahia. Ele é o Cacique Babau. Invade fazendas para conseguir a demarcação de uma reserva indígena
Mariana Sanches (texto) e Marcelo Min (fotos), de Ilhéus, BA
Mariana Sanches (texto) e Marcelo Min (fotos), de Ilhéus, BA
DESTEMIDO
Rosivaldo Ferreira da Silva, o Cacique Babau, em uma das áreas invadidas sob seu comando. Ele enfrenta sem medo a Polícia Federal
Rosivaldo Ferreira da Silva, o Cacique Babau, em uma das áreas invadidas sob seu comando. Ele enfrenta sem medo a Polícia Federal
O riso é estridente, quase debochado. Enquanto ri, Rosivaldo Ferreira da Silva, de 35 anos, chacoalha todo o corpo, a fileira de dentes de boi que carrega no pescoço e o cocar de penas na cabeça. A irreverência e a simpatia contrastam com a descrição feita pela Polícia Federal das ações e do caráter de Rosivaldo, ou Cacique Babau, como ele é conhecido no sul da Bahia. Sobre a mesa do delegado federal Cristiano Barbosa, a pasta intitulada Dossiê Cacique Babau dá a dimensão das façanhas atribuídas a Rosivaldo. São ao menos dez inquéritos, em cerca de 500 páginas, que incluem acusações de sequestro, furto, invasão de propriedade privada, incêndio criminoso, porte ilegal de armas, ameaça, formação de quadrilha.
Babau é um dos líderes do grupo de 3 mil pessoas que se autointitulam tupinambás, os primeiros índios com quem Pedro Álvares Cabral travou contato ao desembarcar em terras brasileiras. Desde 2004, ele e seu bando já invadiram 20 fazendas na região da Serra do Padeiro, localizada entre os municípios baianos de Ilhéus, Buerarema e Una. De acordo com a Polícia Federal, os índios usam armas e recorrem à violência em suas invasões. Nos últimos cinco anos, Babau passou a ser considerado por autoridades locais um inimigo público no sul da Bahia.
Babau dá risada quando confrontado com sua ficha policial. Nega que ande armado ou promova a violência, mas se deleita ao lembrar que os tupinambás ficaram conhecidos como um povo guerreiro e canibal. “De vez em quando a Polícia Federal vem aqui buscar um cadáver. Não encontra nada, só a gente comendo carne assada. Mas é carne de animal. Nossos antepassados faziam prisioneiros para virar almoço. É por isso que eu não sequestro ninguém. Se sequestrar, a gente vai ter de comer”, afirma Babau, às gargalhadas.
Por sua ótica, as invasões são “retomadas” de áreas que eram terras dos indíos até 1500 e foram usurpadas pelos brancos ao longo da história do Brasil. Para seus seguidores, estudiosos, autoridades e até mesmo rivais, Babau é uma espécie de versão cabocla de Lampião, o histórico chefe do cangaço. No sul da Bahia, diz-se que a cabeça de Babau valeria R$ 30 mil.
Em novembro do ano passado, a Polícia Federal tentou prender Babau. Escalou 120 homens, munidos de balas de borracha e gás lacrimogêneo. Foi recebida a pedradas. No fim da operação, a PF não prendeu o cacique e ficou encurralada na mata. A mando de Babau, os índios bloquearam as estradas de terra com troncos de árvore. “Nós chegamos à tribo ostensivamente armados, e o Babau nos enfrenta”, diz, abismado, o delegado da Polícia Federal Cristiano Barbosa. Em junho, em outra operação, policiais federais foram acusados de torturar quatro índios do grupo de Babau. O inquérito, conduzido pelo delegado Barbosa, concluiu que os policiais não cometeram crime.
Boa parte dos índios atribui às ações de Babau a finalização, em abril, do relatório da Fundação Nacional do Índio(Funai) que dá aos tupinambás um território de 47.376 hectares. A área se estende da Serra do Padeiro ao litoral baiano e inclui centenas de fazendas, hotéis, cemitério, além de quase metade da Vila de Olivença, uma das primeiras concentrações urbanas do Brasil, em Ilhéus. Se for homologada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que pode acontecer em alguns meses, a reserva indígena dos tupinambás será 43% maior do que a cidade de Belo Horizonte.
A possibilidade de demarcação inflamou a identidade indígena, oculta até recentemente
Babau não tem apenas um robusto prontuário policial. A escola e os fornos de farinha da aldeia, construídos com financiamento público, são exemplos de sua liderança e de sua capacidade de articulação. Essas habilidades foram desenvolvidas longe das matas da Serra do Padeiro. Babau, cujos traços faciais revelam mais sua ascendência negra do que a indígena, faz parte da primeira geração com ensino médio de uma família que vive do plantio de mandioca, banana e cacau em um pequeno sítio. Às vésperas da comemoração dos 500 anos do descobrimento do Brasil, Babau foi para a escola em Santa Cruz Cabrália, primeiro ponto do país onde os portugueses pisaram. Lá, descobriu a América: algumas ONGs o fizeram ver que a ascendência indígena poderia garantir-lhe direito às terras onde nasceu. Babau engajou-se em fazer a Funai reconhecer seu grupo como os Tupinambás de Olivença.
Babau é um dos líderes do grupo de 3 mil pessoas que se autointitulam tupinambás, os primeiros índios com quem Pedro Álvares Cabral travou contato ao desembarcar em terras brasileiras. Desde 2004, ele e seu bando já invadiram 20 fazendas na região da Serra do Padeiro, localizada entre os municípios baianos de Ilhéus, Buerarema e Una. De acordo com a Polícia Federal, os índios usam armas e recorrem à violência em suas invasões. Nos últimos cinco anos, Babau passou a ser considerado por autoridades locais um inimigo público no sul da Bahia.
Babau dá risada quando confrontado com sua ficha policial. Nega que ande armado ou promova a violência, mas se deleita ao lembrar que os tupinambás ficaram conhecidos como um povo guerreiro e canibal. “De vez em quando a Polícia Federal vem aqui buscar um cadáver. Não encontra nada, só a gente comendo carne assada. Mas é carne de animal. Nossos antepassados faziam prisioneiros para virar almoço. É por isso que eu não sequestro ninguém. Se sequestrar, a gente vai ter de comer”, afirma Babau, às gargalhadas.
Por sua ótica, as invasões são “retomadas” de áreas que eram terras dos indíos até 1500 e foram usurpadas pelos brancos ao longo da história do Brasil. Para seus seguidores, estudiosos, autoridades e até mesmo rivais, Babau é uma espécie de versão cabocla de Lampião, o histórico chefe do cangaço. No sul da Bahia, diz-se que a cabeça de Babau valeria R$ 30 mil.
Em novembro do ano passado, a Polícia Federal tentou prender Babau. Escalou 120 homens, munidos de balas de borracha e gás lacrimogêneo. Foi recebida a pedradas. No fim da operação, a PF não prendeu o cacique e ficou encurralada na mata. A mando de Babau, os índios bloquearam as estradas de terra com troncos de árvore. “Nós chegamos à tribo ostensivamente armados, e o Babau nos enfrenta”, diz, abismado, o delegado da Polícia Federal Cristiano Barbosa. Em junho, em outra operação, policiais federais foram acusados de torturar quatro índios do grupo de Babau. O inquérito, conduzido pelo delegado Barbosa, concluiu que os policiais não cometeram crime.
Boa parte dos índios atribui às ações de Babau a finalização, em abril, do relatório da Fundação Nacional do Índio(Funai) que dá aos tupinambás um território de 47.376 hectares. A área se estende da Serra do Padeiro ao litoral baiano e inclui centenas de fazendas, hotéis, cemitério, além de quase metade da Vila de Olivença, uma das primeiras concentrações urbanas do Brasil, em Ilhéus. Se for homologada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o que pode acontecer em alguns meses, a reserva indígena dos tupinambás será 43% maior do que a cidade de Belo Horizonte.
A possibilidade de demarcação inflamou a identidade indígena, oculta até recentemente
Babau não tem apenas um robusto prontuário policial. A escola e os fornos de farinha da aldeia, construídos com financiamento público, são exemplos de sua liderança e de sua capacidade de articulação. Essas habilidades foram desenvolvidas longe das matas da Serra do Padeiro. Babau, cujos traços faciais revelam mais sua ascendência negra do que a indígena, faz parte da primeira geração com ensino médio de uma família que vive do plantio de mandioca, banana e cacau em um pequeno sítio. Às vésperas da comemoração dos 500 anos do descobrimento do Brasil, Babau foi para a escola em Santa Cruz Cabrália, primeiro ponto do país onde os portugueses pisaram. Lá, descobriu a América: algumas ONGs o fizeram ver que a ascendência indígena poderia garantir-lhe direito às terras onde nasceu. Babau engajou-se em fazer a Funai reconhecer seu grupo como os Tupinambás de Olivença.
CLIMA DE GUERRA
Ruína de uma casa incendiada em uma das fazendas invadidas pelo Cacique Babau. A PF diz que foram os índios que provocaram o incêndio
O reconhecimento veio em 2002. De lá para cá, os tupinambás, que, de acordo com os documentos oficiais e a memória de agricultores da região, estavam desaparecidos havia mais de um século, saíram do armário. Munidos de cocar e de uma cópia da Constituição de 1988 (que reconhece os direitos dos indíos sobre as terras que tradicionalmente ocupam), começaram a pleitear áreas em Ilhéus e na região e a se multiplicar. De acordo com a Funai, em 2004 havia 3 mil tupinambás na Bahia. Em 2009, a Fundação Nacional de Saúde (Funasa) registrou 4.729 tupinambás, um crescimento de 58% em cinco anos. “Nem coelho consegue se reproduzir tão depressa. Isso é formação de quadrilha”, diz Luiz Henrique Uaquim, presidente da Comissão de Pequenos Agricultores da região. Uaquim desconfia que militantes sem-terra e agricultores estão engrossando as invasões indígenas. O trabalhador rural João Marques confirma a suspeita. “Babau me chamou para entrar no movimento. Disse que eu tinha cara de índio. Mas eu não quis”, diz Marques, que garante não ter ascendência indígena. Babau nega ter inflado seu grupo, mas admite ter recebido propostas para fazê-lo. E acusa outros caciques de aceitar filiar sem-terra aos tupinambás. É possível que isso tenha ocorrido. O recenseamento da Funasa é feito com base nas informações dadas pelos caciques sobre suas aldeias. Para ser considerado índio basta que o sujeito se autodenomine como tal. “Nasci e cresci aqui, e só nos últimos anos começou a aparecer índio para todo lado”, diz Alcides Kruschewsky (PSB-BA), vereador em Ilhéus. “Sou descendente das mesmas pessoas que os que se dizem índios são. Esse grupo achou um argumento infalível para conseguir terra: dizer que é índio.”
"Não acredito que o governo vai ter a ousadia de dizer que a terra em que moro há 53 anos não é minha"
MANUEL DE QUADROS, agricultor e vizinho de Babau. Ele pode ser obrigado a deixar suas terras se a demarcação sair.
As reivindicações dos tupinambás começaram a transbordar para invasões em 2004. De acordo com os agricultores, os índios chegam às fazendas em bando, armados de escopetas e rifles, expulsam os não índios com ameaças de morte, destroem lavouras, incendeiam casas. “O modus operandi do grupo que se diz indígena é semelhante ao dos sem-terra”, afirma Pedro Holliday, juiz federal de Ilhéus. Holliday já deu 19 liminares de reintegração de posse, mas nenhuma foi cumprida. A Justiça entendeu que a operação de retirada dos índios de qualquer uma das fazendas poderia ser a faísca detonadora de uma explosão de violência na região.
Babau dá duas explicações para as invasões. Uma é de ordem prática. “Foi preciso ocupar as terras porque a Funai estava demorando demais com a demarcação. Até 2004 tínhamos 30 crianças desnutridas por falta de comida. E se é para pedir esmola à Funai preferimos morrer guerreando”, diz. A segunda é de natureza religiosa. “Nos nossos rituais sagrados, os encantados, os espíritos que olham por nós, nos disseram que era hora de retomar a nossa terra.”
Para quem está sob a ameaça das ações comandadas por Babau, as invasões de terras atendem a interesses oportunistas. “Tem tido muito abuso na área, muita gente querendo se passar por índio para tentar conseguir alguma vantagem ou chantagear donos de terras”, diz Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central e dono de um hotel na região. Parte do terreno de Armínio está dentro da área que a Funai diz ser dos tupinambás.
Se a demarcação sair, entre 18 mil e 20 mil não índios que hoje moram na região em cerca de 600 propriedades terão de partir. Em sua maioria, são pequenos produtores, que plantam cacau, mandioca, banana, abacaxi, melancia e borracha. “Oitenta por cento da área é dividida em sítios de até 10 hectares de terras, herdados de pais ou avós”, diz Clodoaldo Barbosa, presidente do Conselho Regional Associativista de Buerarema e Adjacências (Crasba), que reúne 1.200 produtores rurais .“Cada família vive com R$ 800 por mês. E não tem para onde ir. O clima está muito tenso.”
Os agricultores sob ameaça de despejo dizem que preferem começar uma guerra a ser retirados de suas terras. “Não acredito que o governo vai ter a ousadia de dizer que a terra em que moro há 53 anos, pagando imposto, não é minha”, diz Manuel de Quadros, de 69 anos, vizinho de Babau. Quadros divide com quatro irmãos e um filho os 75 hectares de terra herdados do pai. “Quando chegamos aqui, derrubamos a mata no braço para plantar a roça. Não tinha essa história de índio.”
A tensão é ampliada por causa do obstáculo, praticamente intransponível, de distinguir quem é índio e quem não é no sul da Bahia. A complexidade da situação é retratada pelo caso de Clodoaldo Barbosa, presidente do Crasba. Uma das principais lideranças contrárias à demarcação, Clodoaldo visita todas as semanas sua família em uma das áreas invadidas por Babau. Os pais e os irmãos de Clodoaldo se dizem índios. Ele é o único que não quis assumir a identidade indígena.
A valorização da ascendência tupinambá foi inflamada pela possibilidade de demarcação das terras. Há dez anos, era raro encontrar alguém de cocar circulando por Ilhéus. Hoje, índios abordados para entrevista se apressam em “vestir a cultura”. Voltam paramentados com saiotes de palhas e cocares, feitos com penas de galinhas criadas em fundos de quintal ou de araras mantidas em zoológicos. Babau comprou um pavão. Pagou R$ 150 pelo bicho, que lhe dá penas o ano todo. “Eles conservam características tradicionais, como o uso de ervas medicinais, mas isso nem sempre é visível para o resto da sociedade. Quando o processo político de demarcação começou, os índios passaram a apelar para os estereótipos de índios de cocar”, diz a antropóloga Susana Viegas, da Universidade de Lisboa, uma das responsáveis pelo laudo antropológico que sustenta a demarcação.
Ao pesquisar a região em 1997, Susana não encontrou um único índio que falasse tupi, a língua original dos tupinambás. Mas há cerca de cinco anos as crianças locais começaram a ter lições de tupi em escolas indígenas. Em vez de vôlei, praticam arco e flecha nas aulas de educação física. E, nas de educação artística, aprendem a fazer artesanato de sementes. Embora a maioria dos índios seja católica, resultado da colonização, eles evitam se referir a Deus. Preferem agora dizer Tupã. “Temos orientado nossos jovens a não casar com pessoas que não sejam índias”, diz Valdinete Nascimento, professora da Escola Estadual Indígena Tupinambá de Olivença. “A miscigenação nos descaracterizou. Dizem que não somos índios porque nosso cabelo não é liso.” Se nas últimas décadas as famílias da região davam a seus filhos o nome Valdinete ou Rosivaldo, hoje os pais preferem nomes em tupi. O filho de Babau, de 3 anos, se chama Amatiri – que significa raio, em tupi, de acordo com os índios.
A proposta de demarcação da área dos tupinambás é tão polêmica que um relatório parecido com o que deverá desembarcar na mesa do presidente Lula foi rejeitado em 2006 pelo então presidente da Funai, Mércio Gomes. Os antropólogos da Funai que assinam o laudo da demarcação defendem seu trabalho com o argumento de que há muitas concessões aos não índios na proposta atual. “Na verdade, os índios queriam muito mais terras”, diz o antropólogo Jorge Luiz de Paula, um dos autores do estudo. “Deixamos de fora muitos lugares em que os índios moravam antigamente, mas onde hoje só há brancos.”
No sul da Bahia, a violência é tão antiga quanto as disputas por terras. A legislação garante a terra a quem, como Babau, reivindica a identidade indígena. Por outro lado, assegura também a fazendeiros e agricultores o direito à propriedade privada. Com bons propósitos, os constituintes de 1988 tentaram acabar com os conflitos e corrigir injustiças históricas. Podem ter criado alguns problemas insolúveis.
Revista Época
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