Agora, em dezembro do ano que findou, dei-me conta de que completei 62 anos de formado em Direito e, naturalmente, lembrei-me dos professores que tive na Faculdade, falecidos, mas não esquecidos, dos colegas de turma e contemporâneos, de advogados, juízes e desembargadores que me honraram com sua amizade, deferência e exemplos, de servidores do foro e do Tribunal, modelos de correção e de urbanidade. Contados os cinco anos do curso, mesmo sem incluir os dois do pré-jurídico, o período de Porto Alegre ultrapassa dois terços de século. Um pedaço de tempo, se é que tempo tem pedaço.
Como visse que se cogita de revogar a lei da anistia, lembrei-me também do que aprendera a respeito quando estudante. A notícia me pareceu esdrúxula. Mais ainda, quando li que a projetada revogação da lei de 1979 teria sido concebida nos altos escalões do governo federal ou quem sabe dos baixos.
Sei que contou com a adesão do presidente Luiz Inácio, pelo menos com sua assinatura. E como uma lembrança puxa outra, recordei a figura do saudoso amigo e mestre José Frederico Marques que, em um de seus livros, ensina o que é corrente entre tratadistas, a anistia "é o ato legislativo em que o Estado renuncia ao direito de punir.
É verdadeira revogação parcial, hic et nunc, de lei penal. Por isso é que compete ao Poder Legislativo a sua concessão. Lei penal ela o é, por conseguinte: daí não a poder revogar o Legislativo, depois de tê-la promulgado, porque o veda o art. 141 §§3º e 29º", da Constituição de 1946,
aos quais correspondem os incisos 36 e 40 do artigo 5º, da Constituição de 1988.
Se há dogmas em matéria jurídica, esse é um deles.
A lei penal só retroage quando benéfica ao acusado ou mesmo condenado. Daí sua irrevogabilidade. Os efeitos da lei da anistia se fizeram sentir quando a lei entrou em vigor. O próprio delito é apagado. A revogação da lei de anistia ou que outro nome venha a ter importaria em restabelecer em 2010 o que deixou de existir em 1979.
Seria, no mínimo, uma lei retroativa, pela qual voltaria a ser crime o que deixara de sê-lo no século passado.
O expediente articulado nos meandros do Planalto, a meu juízo, retrata o que em Direito se denomina inepto. Popularmente, o vocábulo pode ter um laivo depreciativo. Na terminologia jurídica, significa "não apto" a produzir o efeito almejado. Por isso, não hesito em repetir que o alvitre divulgado é inepto, irremediavelmente inepto.
Em resumo, amigos do governo, mui amigos, criaram-lhe um problema que não existia.
É claro que estou a tratar assunto importante com a rapidez de um artigo de jornal. Para terminar, a anistia pode ser mais ou menos justa, mas não é a justiça seu caráter marcante. É a paz. No arco-íris social, com suas contradições, essa me parece ser a nota dominante. Não estou dizendo novidade.
À maneira de post scriptum, lembro que a oposição, ao tempo encarnada no MDB/PMDB, foi quem levantou a tese da anistia, e era natural fosse ela; e desde o início falou em anistia recíproca.
O setor governista não aceitava a reciprocidade, até que algumas pessoas mais avisadas se deram conta de que, depois de período tão longo, em que tudo fora permitido, a anistia devia ser mesmo ampla, a ponto de abranger as duas partes em que o país fora dividido.
Tive ocasião de dizer isso depois da anistia, quando localizada, em Petrópolis, uma casa onde a ignomínia da tortura fizera pouso. Ninguém contestou. Está documentado e publicado. Repito agora com a mesma tranquilidade.
Paulo Brossard
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