Criminalidade dos potentes gera o megabandido do século 21.
Quando se trata de crime organizado, os pareceres do juiz Walter Fanganiello Maierovitch, 59 anos, dispensam credenciais e currículos. Basta apenas informar que atualmente ele é consultor da União Européia sobre o assunto, circunstância que o faz dividir seu tempo entre São Paulo, onde mora, e Roma, sua base de operações. Em todo caso, vale registrar que ele foi o primeiro Secretário Nacional Anti-Drogas, nomeado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso.
Também dirige o Instituto de Ciências Criminológicas Giovanni Falcone, que é hoje o mais expressivo arquivo sobre o tema na América do Sul. Habitual articulista nos jornais da Capital, Maierovitch mantém uma coluna semanal na revista Carta Capital e outra na Rádio CBN . Essa vasta experiência propiciou um livro esclarecedor que ele está lançando hoje à noite, às 20h, no Palácio Veridiana, na avenida Higienópolis, 20, intitulado "Na Linha de Frente" (Editora Micael).
O livro reúne uma coletânea de artigos da qual emerge um novo protagonista nos estudos da Criminologia: o criminoso potente. Talvez ele já exista há um bom tempo. Mas, até então, nunca havia sido descrito, como se faz com novas espécies descobertas, para torná-las oficiais e entronizá-las nos compêndios científicos.
Portanto, o criminoso potente é uma novidade: super-bandido travestido de grande empresário, de mega-investidor e até de político renomado, que manipula cordéis do poder. Os capos de organizações mafiosas ou do tráfico, parlamentares e outras figuras de proa da sociedade lhe abanam a cauda como fazem os cãezinhos de luxo. Conheça-o.
Diário do Comércio – Neste seu novo livro, "Na Linha de Frente", o senhor trabalha com uma expressão nova, à qual está dando extrema importância, que é a "criminalidade dos potentes". O que vem a ser isso?
Walter Maierovitch – É um conceito que levanta tópicos esclarecedores, na verdade reveladores, sobre o funcionamento do crime organizado. Os potentes são os verdadeiros organizadores e comandantes do crime organizado, aqueles que, inclusive sob a aparência de respeitabilidade, atividades prestigiosas e até do interesse público, manejam os cordéis.
DC – Eles já não estariam enquadrados na classificação dos "criminosos de colarinho branco"?
Maierovitch – Não. Há uma diferença essencial, relativa ao poder exercido. Colarinho branco é uma designação genérica para criminosos que não se enquadram no figurino de bandidos convencionais e de atos criminosos convencionais. Não têm cara de bandidos, não se vestem como bandidos, ao contrário. São pessoas que se movimentam em atividades e ambientes de boa qualificação social. Mas os potentes estão em patamares ainda mais acima, embora pertençam ao mesmo círculo dos colarinhos brancos. Neste mundo do crime estariam para um CEO em relação a gerentes.
DC – Como esse novelo começou a ser desenrolado?
Maierovitch – Começou com o atentado mafioso contra o juiz Giovanni Falconi em Palermo, Itália, em 1992. Falcone, que era um dos mais ativos juízes anti-máfia, foi literalmente dinamitado. A investigação sobre sua morte levantou a ponta de um gigantesco véu. Começou a se perceber que a Máfia, como organização, não seria suficientemente forte para fazer o que fez, do ponto de vista político. Constatou-se também que o caráter transnacional de organizações mafiosas, a capacidade de conseguir eleger candidatos a Parlamentos, de estabelecer vínculos com partidos e instituições consagradas estavam muito além do seu poder de fogo. Então, foi possível entender que havia um tipo de atividade criminal acima do repertório comum de máfias, que passou a ser chamada de "criminalidade dos potentes", que efetivamente poderia dominar os controles de poder.
DC – Qual foi o ponto de partida para se chegar a essa descoberta?
Maierovitch – O juiz Falconi foi dinamitado em seu carro em maio de l992. Em julho, foi a vez do seu braço-direito, Paulo Borsellino. Ocorre que Borsellino trazia consigo sua inseparável agenda, que era chamada de agenda vermelha, na qual estavam anotadas as relações entre políticos e mafiosos. Foi este o fio da meada.
DC – Mas esta associação entre mafiosos e políticos ou outras similares, como a de bicheiros com escolas de samba, não é nenhuma novidade.
Maierovitch – Mas neste caso é diferente. Essas associações citadas não têm a característica de manuseio ou manipulação do poder. A criminalidade dos potentes se assenta sobre três pilares:
1) a corrupção sistêmica,
2) a busca de controlar o poder efetivamente, em favor dos seus interesses e
3) o emprego de métodos mafiosos para atingir seus objetivos.
O caso Andreotti é ilustrativo dessas manobras. Foram 28 anos de poder.
DC – Giulio Andreotti foi o primeiro-ministro italiano em cujo mandato se deu o seqüestro e assassinato do democrata-cristão Aldo Moro pelas Brigadas Vermelhas, não foi?
Maierovitch – A família de Moro afirma que Andreotti não negociou o suficiente, pois as brigadas queriam entrar em acordo. Hoje Andreotti é senador vitalício por força de particularidades da legislação italiana. Foi sete vezes primeiro-ministro, e, por ligações mafiosas, foi condenado no Tribunal de Cassação, que é a suprema corte do país. A condenação foi prescrita em função de limite de idade, mas a verdade é que, embora extinta a punibilidade, ele está condenado em trânsito em julgado. Mas na Itália a população pensa que ele foi absolvido. O episódio revela a capacidade de manobra dos potentes. É gente com muita influência e muito dinheiro.
DC – Mas a descrição desse quadro cria uma situação sem saída, porque essa gente pode pagar os melhores advogados, consultores e assessores a peso de ouro. Ou seja, tem recursos para driblar a lei, não é?
Maierovitch – De fato, é assim, como acabamos de assistir recentemente no Brasil com o caso Daniel Dantas. No caso Andreotti tivemos um fato suplementar que deixa claro o poder de influenciar. Na RAI (rede estatal de TV da Itália) há um programa de grande audiência intitulado "Porta a Porta", apresentado por um sujeito chamado Bruno Vespa. O cenário é uma sala de visitas onde as pessoas estão conversando. De repente, toca a campainha e os participantes vão entrando. Quando Andreotti foi absolvido da acusação de ligações mafiosas em primeiro grau, foi feito um programa especial com ele. Do ponto de vista jornalístico, isso foi razoável e oportuno. Ocorre que quando ele foi condenado na corte de apelação, nada foi feito. Pior: quando o Tribunal de Cassação confirmou a condenação, não restando mais instâncias a recorrer, também nada foi feito. O assunto foi esquecido.
DC – Este quadro faz supor que todas esferas de poder estão contaminadas pela ação desses super-colarinhos brancos.
Maierovitch – Sim. E este é o ponto. O que importa é discutir os mecanismos que podemos ter à disposição para fazer frente, porque, evidentemente, o problema está entranhado entre nós. Agora, está se descobrindo, por exemplo, que a criminalidade no Rio de Janeiro tem deputados e vereadores a seu favor.
DC – O senhor está querendo dizer que a instalação da criminalidade dos potentes entre nós já está em andamento?
Maierovitch –Eu penso que sim. O episódio Daniel Dantas é de uma clareza ímpar. O de Álvaro Lins, ex-chefe de polícia da governadora Rosinha Garotinho, também é. Idem para a a situação dos morros do Rio de Janeiro, outra sólida constatação. O meu modesto livro de artigos indica que essa criminalidade peculiar instala-se no organismo do Estado e fica lá, parasitária, sugando-o.
DC – O senhor já citou duas vezes o banqueiro Daniel Dantas.
Maierovitch – É porque se trata de um caso exemplar, devido à sua capacidade de manipulação e de poder de influência. Conseguiu habeas-corpus no Supremo Tribunal Federal contra toda orientação jurídica estabelecida. Por outro lado, e isto é estarrecedor, a ministra Ellen Gracie deu uma decisão proibindo a perícia nos discos rígidos apreendidos pela Polícia Federal durante as investigações. Seria algo parecido com a seguinte situação: eu matei um sujeito dentro do meu apartamento. Os vizinhos já estão sentindo o cheiro do corpo em decomposição, há sinais evidentes do sangue que escorreu por baixo da porta. Mesmo com todas as evidências, eu conseguiria uma decisão da ministra Ellen Gracie de que ninguém poderá entrar no meu apartamento para ver o que está acontecendo.
José Maria dos Santos
Diário do Comércio
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário