domingo, 28 de setembro de 2008

Quilombolas e Índios agrícolas

QUILOMBOLA
Pioneiros foram os quilombolas da Comunidade Boa Vista. Situada em Oriximiná, no Pará, receberam seu título agrário em 24 de novembro de 1995. Em mãos. As margens do rio Trombetas choraram de alegria. Nascia ali, porém, uma perversão.
Claro está a Constituição. O artigo 68, das Disposições Transitórias, afirma: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”. Preciso. Ninguém poderá discordar.

Na comemoração dos 300 anos de Zumbi, o imperativo constitucional oferecia ao então Presidente Fernando Henrique Cardoso o direito de favorecer os quilombolas do Pará. Ao Incra coube emitir o título da terra. Justiça era feita, pela primeira vez, aos povos perseguidos da raça negra. O Brasil, como se vê, começou antes do governo Lula.

Facilitou o trabalho do governo, na época, a firme atuação dos antropólogos da Comissão Pró-Índio, de São Paulo, junto à associação criada pelos próprios remanescentes em Oriximiná. Não havia dúvidas. Naquela distante beirada de rio, centenas de famílias viviam e produziam espalhadas no meio do mato, fugidas sabe-se lá quando do mando escravista.

Durante todo esse tempo, escondidos da civilização, cultivaram suas origens. Jamais abandonaram sua cultura, guardando o segredo dos costumes históricos. Para eles legislaram os constituintes de 1988, assegurando-lhes o direito das terras que, afinal, sempre ocuparam. O conceito fundamental da boa reforma agrária diz: “a terra para quem nela trabalha”.

Na década de 90, sabia-se existir inúmeras comunidades remanescentes de quilombos no país. Talvez umas 500. Ao governo caberia identificá-las devidamente, delimitar seus perímetros, dando seqüência ao processo de regularização fundiária. Não era complicado.

Mas a ousadia do governo levantou temores na oligarquia. Ocorre que várias comunidades quilombolas haviam sido invadidas durante a expansão da fronteira agrícola. O progresso no campo aproximava mundos distantes. Sobreveio o litígio agrário. Não sendo pacífica a posse da terra, o artigo 68 da Constituição exigia regulamentação.

Era processual o maior problema. Donos de terra em áreas supostamente quilombola exigiam indenização. Não apenas das benfeitorias, mas da propriedade rural. Ora, se a Constituição estabelece, peremptoriamente, que pertence aos remanescentes de quilombos as terras que ocupam, como poderia o governo pagar para os brancos, invasores, para de lá saírem?

O imbróglio jurídico amarrou o assunto. Mesmo assim, dezenas de conhecidas comunidades quilombolas obtiveram, com ajuda da Fundação Palmares, seu titilo fundiário. Tudo limpo, sem problemas.

Passou o tempo. Lula venceu as eleições e, logo em 2003, quis modificar a matéria. Baixou o Decreto 4887/03, dando poderio total ao Incra para dirimir eventual conflito sobre a propriedade da terra ocupada pelos quilombolas. Facilitou aos tomadores de decisão. Até ai, tudo bem.

A grande insensatez do governo petista, porém, se expressa no artigo 2°, do referido Decreto. Nele se estabelece que a caracterização dos remanescentes de quilombos será atestada mediante “auto-definição” da própria comunidade. Na roça, isso se chama “porteira aberta”.

Virou uma correria. Militantes políticos saíram a campo para mobilizar quietas comunidades negras, vendendo-lhes o paraíso. Começou a aparecer quilombola pra tudo que é lado. Recente mapa da UnB identifica 2 228 comunidades quilombolas no país, espalhadas por todas as regiões. O primeiro cadastro, de 2000, apontava 840 localidades. Há quem afirme que já são 3 524 comunidades esperando a possível redenção. Outros apontam 5 mil.

A maioria das, pretensas, comunidades quilombolas está concentrada na faixa litorânea. É curioso. Nada a ver com os remanescentes de Oriximiná, embrenhados no interior longínquo. Nem com os Kalungas goianos, fugidos para veredas distantes do cerrado.

A excessiva politização favorecida pelo governo de plantão roubou, do conceito de quilombo, o dado fundamental, qual seja, a ocupação da terra. Passou a significar, conforme apontou Denis Rosenfeld, uma genérica comunidade de cor, sentimentos e afinidades. Sob a definição do governo petista, quilombola significa todo descendente de escravos, sem vínculo territorial. Um absurdo.

O Brasil precisava, sim, corrigir a injustiça social cometida contra os fugidios da escravidão. Significava resolver um problema histórico. Porém, certa ideologia tupiniquim, aquela que mistura revanchismo com esquerdismo, ao invés de ajudar, criou um novo, e maior, problema para a sociedade.

A área reivindicada pelas comunidades quilombolas ultrapassa 25 milhões de hectares, maior que o território paulista. A pretensão não guarda qualquer relação com a posse, ou exploração, da terra. Basta se declarar remanescente de quilombo, e apontar onde seus ancestrais viveram. O assunto descamba para a vendeta.

Haverá, por certo, frustração de expectativas. O proselitismo político inconseqüente, que vende solução milagrosa para afirmar sua prepotência neo-revolucionária, deixará seqüelas. Rancores serão criados. Novos ódios surgirão. Aumentará, ao invés de diminuir, a questão racial.

O perigo, mais uma vez, é a conta sobrar para os agricultores sérios do país. Logo aparece algum boboca dizendo que a culpa é do agronegócio. Definitivamente, quem criou o problema mora na cidade.
Xico Graziano


ÍNDIOS AGRÍCOLAS

Todos os olhares se voltam para Roraima, à espera da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a reserva Raposa Serra do Sol. A sociedade, ansiosa, torce por uma solução harmônica sobre aquele longínquo espaço indígena. Enquanto isso, aqui mais perto, em Mato Grosso do Sul (MS), a Funai apavora os agricultores.


O problema dos índios se discute em cada esquina de Campo Grande. Os produtores rurais se mobilizam para resistir à tomada de suas fazendas. O governo estadual está revoltado com a atitude federal. A população anda perdida em meio à discussão. Ninguém sabe como vai terminar essa terrível história.

Há tempos se discute a situação indígena em Mato Grosso do Sul. Existem no Estado 38 grupos étnicos, ligados aos guaranis-caiovás. A maioria das comunidades (26) se encontra em áreas já definitivamente demarcadas, contendo 583 mil hectares, onde vivem 29 mil indígenas. Excluindo a grande Reserva da Bodoquena, vivem apertados. Outros 2 mil índios aguardam a regularização de 30 mil hectares. É justo, e um direito constitucional, que os índios tenham o direito à terra que tradicionalmente ocupam. Só imbecis discordam disso.

A questão é outra. Depois que Lula assumiu a Presidência, surgiu uma conversa diferente, sobre a existência de uma tal "nação indígena" do Cone Sul. Articulados com a turma do MST, acobertados pela Funai, grupos de índios começaram, desde 2004, a chegar do Paraguai. Fazendas antigas, com excelente exploração agropecuária, entraram na cobiça alheia. Advogados foram mobilizados para enfrentar a estranha ameaça ao território nacional.

De repente, a pendenga esquentou. O governo federal publicou, agora em julho, seis portarias determinando que 26 municípios do sul do Estado sejam investigados, à procura de resquícios de ocupação dos índios. Uma área de 10 milhões de hectares, terra fértil, envolvendo Dourados, Miranda, Naviraí, Rio Brilhante e Maracaju, vai receber a visita dos antropólogos oficiais. Imaginem a confusão que isso vai provocar.

Nessa região reside o miolo da produção rural de Mato Grosso do Sul. Ali labutam 30 mil agricultores, metade do total estadual, responsáveis por 60% da produção de grãos, especialmente soja e milho. Entremeados às propriedades tradicionais existem 36 assentamentos de reforma agrária, com 8,7 mil famílias. Todos se encontram atordoados.

Conflito na certa. Essas terras começaram a ser tituladas há um século. Com o tempo, essa fronteira agrícola recebeu fortes estímulos governamentais, visando a abrir a região ao progresso da agropecuária. De repente, locais onde não se enxergam índios há 50 anos, ou mais, passaram a ser reivindicadas como se a moradia deles fossem.

Ora, a Constituição federal garante o direito às terras que os índios "tradicionalmente ocupam", não àquelas que um dia ocuparam. Porque, se assim fosse, o litoral de Santos, a capital de São Paulo e o Rio de Janeiro também teriam de ser devolvidos aos aborígines. Sabe-se lá como.

Fortes reações do governo estadual fizeram a Funai recuar, por ora, nas vistorias. O órgão federal, contemporizando, afirmou que o território a ser reivindicado é menor que o suposto. Pelo sim, pelo não, as invasões já começaram. A Fazenda Petrópolis, do ex-governador Pedro Pedrossian, localizada no município de Miranda, encontra-se dominada por essa nova cria da política federal, a mistura de índio com sem-terra.

Curioso, para não dizer estranho. As aldeias guaranis instaladas em Mato Grosso do Sul se colocam de escanteio nessa balbúrdia. Sua reserva em Miranda, por exemplo, com 2.600 hectares, deveria crescer, a seu pedido, mais 500 hectares, suficientes para o cultivo que desejam há tempos. Mas a Funai achou pouco. Seus antropólogos acabam de separar 33 mil hectares, envolvendo várias fazendas, para aumentar a área indígena. Somente a Fazenda Vazante, incluída no perímetro demarcado, contempla 16 mil hectares, criando 19 mil cabeças de gado; seu título de propriedade, com registro em cartório, passa de cem anos. Acredite se quiser.

Os caciques das aldeias locais afirmam, publicamente, que sua prioridade reside na assistência médica e educacional, não na terra. Sentem-se largados à sua sorte. Os suicídios lá verificados mostraram ao País o que os mato-grossenses do sul já sabem há tempos: as aldeias indígenas estão, infelizmente, em completo abandono. Justiça social zero.

Os índios, porém, desejam trabalhar. Querem tratores, sementes, fertilizantes, almejam condições para produzir seu alimento, e vender o excedente para ganhar um dinheirinho. As novas gerações sonham com o progresso, buscando o conforto que a tutela oficial lhes nega. Projetam ser agricultores, índios agrícolas.

A economia dessa região mato-grossense do sul se encontra paralisada, quase morta. As terras se desvalorizam, investimentos são suspensos, há paradeira no comércio, o desemprego ronda. O pior dos cenários. Sabe-se que, se declaradas indígenas, inexiste qualquer indenização pelas terras, quer dizer, vira pó a agropecuária. Um absurdo.

Os índios merecem respeito e devem ser protegidos pelo Estado, com apoio da sociedade. Um desfecho feliz em Roraima pode repaginar a questão indígena no País, normatizando o processo, ajudando a solucionar esse tremendo rebuliço em Mato Grosso do Sul. Do jeito que está não pode ficar.

Põe um Estado inteiro da Federação em pé de guerra, prejudica os produtores rurais, provoca insegurança jurídica, cria violência, sem ajudar propriamente os índios. Quem ganha com isso?

Somente certos saudosistas, que imaginam corrigir o passado segregando, e não integrando, o índio à sociedade. Vai dar errado.

Xico Graziano

Já em 2005 Xico Graziano escreveu um artigo, o qual reproduzo abaixo e recomendo a leitura, onde apontava o problema em Roraima e em Mato Grosso e principalmente, denunciava a invasão de Paraguaios travestidos de índios reivindicando terras que nunca foram indígenas.


FÁBRICA DE ÍNDIOS
A Constituição brasileira determina que pertencem aos índios as terras tradicionalmente por eles ocupadas. O assunto é incontestável.
Quando, porém, se manipula a causa indígena, surge a encrenca. Conflitos pipocam país afora.
O direito originário envolve as áreas habitadas e aquelas utilizadas para as atividades, produtivas ou culturais, imprescindíveis à preservação dos povos indígenas. Assim, cabe ao Estado proteger os índios, tutelando-os. Começa pela demarcação das suas áreas. As reservas da Funai apontam 315 registros, somando 73,8 milhões de hectares. Para comparação, toda a área cultivada do país soma 62 milhões de hectares.

Há quem considere o patrimônio indígena exagerado. Considerando a existência de 300 mil índios, resulta numa área média de 246 hectares, incluindo as crianças. Um bom sítio. Essa média se eleva nas reservas mais distantes, como a do Xingu. Lá, a área média é de 560 hectares.

Pouco importa, porém, essa conta. As reservas são coletivas e, além da função precípua de permitir o modo de vida primitivo, assegura a preservação florestal. Ajuda a biodiversidade e protege o futuro. Decididamente, a grandeza das reservas indígenas configura questão menor.

O que pertence, de fato, aos índios está fora do debate. Moradia permanente, florestas de coleta, áreas culturalmente sagradas, o que for. Por isso, são inaceitáveis as invasões das reservas indígenas por madeireiros, mineradoras, garimpeiros, fazendeiros, posseiros. Configura crime contra a humanidade.

Até aqui, tudo politicamente correto. Agora, começa a ousadia. Ocorre que a rapina histórica promovida pelos brancos paga seu preço num processo oposto. Áreas exploradas por agricultores há quase um século caem na mira do governo, que as reclama para reserva, como se fossem terras indígenas. Perícias fajutas alimentam uma verdadeira fábrica de índios montada pela Funai.

Dois casos repercutiram fortemente na opinião pública. Primeiro, o da homologação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima. Segundo, a invasão de fazendas no Mato Grosso do Sul. Em ambos se percebe forte viés ideológico, induzindo a população a apoiar os “pobres espoliados” contra os “ricos usurpadores”.

Situações semelhantes se espalham. Na Amazônia, oitenta comunidades extrativistas, formadas por seringueiros caboclos, reivindicam reconhecimento étnico junto à Funai. Em Maringá, no Paraná, um único suposto descendente indígena reclama 5 mil hectares de terra roxa. Coisa maluca.

A falsidade mais evidente se verifica hoje no Pantanal mato-grossense. Ali, na região conhecida como Pirigara, se desenrola um inusitado processo de regularização de pretensas terras indígenas. Tudo começou na década de 80, quando um suposto pajé, chamado Domingos, deixou sua aldeia bororó.

Acolhido na fazenda São Benedito, 30 km acima, no rio S. Lourenço, casou-se com uma agregada e passou a viver no local conhecido como Baia dos Guatós. Naquele braço de pantanal, várias fazendas haviam se originado de um título concedido pelo Estado em 1895. Os últimos relatos de indígenas no local datam de 1718. Três séculos atrás.

Entretanto, em 2000, a Funai iniciou o cadastramento de moradores, a começar do Sr. Domingos, supondo-os descendentes dos índios guatós. Acontece que essa etnia origina-se distante, na região do Caracará, junto à fronteira da Bolívia. Nunca saíram de lá.

Não fez diferença. Transmutados em indígenas, antigos peões de fazenda e agregados em geral, 220 pessoas, passaram à proteção do Estado, recebendo assistência médica, rádios, gasolina, transporte aéreo, assim por diante. Sem verbas para nada, quem financia a tramóia são ong´s estrangeiras. Aumentou a confusão.

O argumento central da Funai reside na existência de um suposto aterro, erigido pelos índios guatós, localizado na margem esquerda do rio Cuiabá. Os registros, porém, comprovam que o “aterradinho do bananal”, conforme é denominado, serviu como base de apoio de viajantes e pescadores. Guató, mesmo, naquelas paradas, somente se encontra no nome da curva do rio. A nomenclatura serviu à ignomínia.

A Justiça foi acionada por cinco proprietários, que detém 36 mil hectares naquela região pantaneira. Parece muito, mas os pastos das fazendas estão alagados na maior parte do ano. Considerado paraíso ecológico, suas matas guardam o maior refúgio das raras araras azuis. A maravilha ecológica periga sucumbir.

Em Roraima, a briga pela homologação contínua da reserva incluiu na terra indígena a cidade de Uiramutã, junto com 150 mil hectares cultivados com arroz. Ficou estranho. No MS, atraídos pela promessa de reconstrução da antiga nação Yvy Katu, guaranis despencam de ônibus vindos do Paraguai. Muito esquisito.

Apontar essa trama cutuca um tabu. Mas presta um serviço à Nação. A causa indígena está extrapolando seus limites. Levado ao extremo, o raciocínio atual da Funai comprovará que todas as terras, agrícolas ou urbanas, devem ser devolvidas aos índios, pois afinal lhes pertenceram um dia. Antes do descobrimento.

Exagerar é uma forma de mentir, dizia Baltazar Gracián. Os índios e sua cultura merecem proteção, disso ninguém discorda. Mas inventar índios soa disparate. Os ideólogos dessa empreita enganam a opinião pública. O culto primitivista ajuda a expiar a culpa de gente rica e alienada. Mas afronta a inteligência e agride o bom senso.

Artigo Publicado dia 22/11/2005 pelos Jornais O Estado de S. Paulo, O Globo e O Tempo, de MG

Xico Graziano é agrônomo e secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo.

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